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☼ em Abril esperanças mil

MEMÓRIA DO 25 DE ABRIL
Enviado por Luis Veiga
Póvoa de Santo Adrião

Leia-se. É lindo porque está bem escrito. E com alma! E porque fala dum acontecimento muito bonito. Apesar dos cravos

(Publicado no blogue Machina Speculatrix)
A Júlia Matos Silva teve a enorme amabilidade de me dar a ler este seu "testemunho de uma noite mágica", a noite de 24 para 25 de Abril de 1974. Um testemunho na primeira pessoa, de uma gente e de um tempo em que a "primeira pessoa" era sempre uma enorme partilha com outras pessoas. Gostei do texto, achei-o relevante e bonito, apeteceu-me que fosse partilhado - e a sua autora, gentilmente, autorizou que aqui o publicasse. Faço da prenda de 25 de Abril, que a Júlia me endereçou, a vossa e nossa prenda de Abril, graças à Júlia Matos Silva. Daqui lhe agradecemos, Júlia - e passo-lhe imediatamente a palavra.

***
A minha noite de 24 para 25 de Abril de 1974 foi «a noite mais bela de todas as noites que me aconteceram», citando Ary dos Santos. A par dos muitos e outros deslumbramentos da minha vida, eu tive o privilégio de viver uma noite inigualável, na qual eu pude conjugar os valores da exigência utópica com o exercício fulcral da luta contra a ditadura. Esta é a memoria de um jornada particular, incrivelmente única.
Às cinco da tarde, o Fernando, o meu marido e cineasta Fernando Matos Silva, telefonou-me para o emprego e disse: «Júlia, não te esqueças que hoje temos o tal jantar. É muito importante. Convinha que viesses cedo.» Esta era a frase de código que havíamos combinado entre ambos para significar aquilo que ambos sabíamos que iria acontecer nessa noite.
No meu emprego, eu estava a viver uma situação profissional particularmente difícil. Desempenhava uma função, desde o princípio de Abril, que me recusara explicitamente a aceitar no início do ano, quando fora nomeada. Ameaçada de despedimento por desobediência à entidade patronal, eu vi-me forçada a assumir essa função, com uma promessa de ser transferida logo que houvesse um lugar compatível. Entretanto, durante os três meses anteriores, o meu dia-a-dia na empresa multinacional onde trabalhava há oito anos, decorrera de uma forma humilhante: sem função, nem telefone, nem gabinete e secretária, cumpria o horário de trabalho, de uma forma totalmente precária e insultuosa: sentada numa cadeira de uma sala pertencente a outra divisão. Estava totalmente proibida de entrar nos andares ocupados pela divisão de marketing. Com o ingresso de um novo diretor da divisão de marketing, um português torna-viagem vindo do Canadá, fora nomeada «assistente de marketing», cujo desenho de funções significava substituir-me ao serviço de pessoal e ser «os olhos e os ouvidos do rei», segundo as suas palavras. O meu papel seria controlar todos os cartões de ponto e contabilizar todos os minutos e segundos de não cumprimento do horário de trabalho, bem como relatar por escrito todas as conversas telefónicas que não fossem de serviço, ou controlar a produtividade dos vendedores, com critérios absolutamente subjetivos. Tinha ainda a missão de medir a produtividade do novo «pool» de dactilografia (formada por secretárias despromovidas a dactilógrafas), nomeadamente na contagem de linhas dactilografadas por pessoa. «Se for caso disso, quero um relatório da receita do sal e da batatinha e do nome de quem a deu ou o nome de quem anda a «brincar» fora do casamento e com quem», afirmava o diretor, para mim e para as outras duas pessoas que haviam sido nomeadas. No meu caso, nunca ele recebeu qualquer nota. De castigo, passei aos dias a imprimir rótulos com uma máquina de «dymo» para classificar as pastas do arquivo de todos os departamentos de vendas, segundo uma lógica totalmente determinada pela sua assistente pessoal.
Assim, imediatamente a seguir ao telefonema, fechei a minha secretária e abandonei o gabinete que partilhava, sem passar cavaco a ninguém. Naquele preciso momento, eu tive a certeza de que nunca mais iria sofrer uma tal humilhação. Saí simplesmente, sem falar com ninguém e ansiosa por chegar a casa.
O Fernando Matos Silva fazia parte de um pequeno círculo de civis, ligado ao MFA, completamente mobilizado para desenvolver várias ações. O centro dessa mobilização passava pelo jornal «República». Na qualidade de cineasta, o seu desígnio seria o de testemunhar e registar de câmara na mão, desde a primeira hora, todos os acontecimentos que se iriam suceder – e foram muitos de sua autoria. Admitia-se, no entanto, em várias reuniões clandestinas, a possibilidade de o Fernando e outros terem que ir para a televisão, no caso de os oficiais do MFA responsáveis pela ocupação da televisão, virem a enfrentar uma total resistência dos profissionais nucleares que nela trabalhavam (o que felizmente não aconteceu, embora as equipas de televisão só tivessem começado a sair na manhã do dia 25 de Abril.)
Quando cheguei a casa, já lá estavam o Fernando Matos Silva e dois importantes jornalistas do Jornal «República»: o Álvaro Guerra e o José Martins Garcia. E assim, fiquei a conhecer toda a cronologia de acontecimentos militares que iriam desencadear-se, a partir de uma determinada hora. Num outro prédio, numa rua perpendicular à nossa casa, estavam o cineasta João Matos Silva e uma equipa, juntamente com todos os equipamentos necessários.
Então, o cenário em minha casa, simultaneamente ansioso e temerário, era composto por quatro adultos, absolutamente convictos e dispostos a arriscar a alma e o físico. Para além deles, estavam os meus pais, dois antifascistas convictos que haviam vindo a Lisboa para uma consulta médica e um bebé de onze meses, a minha filha Cristina.
Na sala, que era, ao mesmo tempo de estar e de jantar, sentámo-nos à volta da mesa onde comemos bastante cedo, de uma forma rápida e nervosa. Quase ninguém comeu e quase ninguém falou, porque no meio de nós estavam dois adultos que não deviam ser envolvidos, por razões óbvias.
«Então não se pode ligar a televisão?», perguntou o meu pai, muito surpreso, por não se ouvir o telejornal. «Hoje não, pai! Eles precisam de trabalhar. Têm uma reunião.»
Levantámos a mesa rapidamente e no centro dela, foi posto um rádio ligado, perfeitamente sintonizado e pronto a fazer soar as surpreendentes senhas musicais. Entretanto, sentámo-nos à volta da mesa, embora, cada um de nós, com o nervosismo, se levantasse e sentasse repetidamente. Fumavam-se cigarros, uns atrás dos outros e pouco se falava, para que os meus pais não fossem envolvidos.
Antes da hora marcada, a campainha da porta tocou por duas vezes, com a diferença de alguns minutos. Naquele preciso momento e sem se conhecerem mutuamente, visitavam-nos dois amigos, totalmente estranhos ao que estava a suceder: o publicitário António Reis, com quem o Fernando estava a fazer um filme de publicidade e o meu primo Vicente Trindade, bailarino no Teatro S. Carlos. Nenhum deles percebeu o que acontecia, nem foi, envolvido de qualquer maneira. Guardou-se total segredo, porquanto tinham que ser protegidos de algo que não se sabia ainda como iria acabar. No dia seguinte, cada um deles manifestou a forma como tinham ficado surpreendidos com o facto de ninguém ter desenvolvido uma conversa de jeito e de terem achado estranho que um rádio a tocar dominasse a atenção de todos nós.
Assim, à hora marcada, os quatro adultos implicados, ouviram, num silêncio de bronze e sem poderem manifestar-se, o som gritante da 1ª senha. Para dar início às operações militares a desencadear pelo Movimento das Forças Armada. João Paulo Dinis, aos microfones dos Emissores Associados de Lisboa dizia:
«Faltam cinco minutos para as vinte e três horas. Convosco, Paulo de Carvalho com o Eurofestival 74, “E Depois do Adeus...”».
E assim, a voz de Paulo de Carvalho inundou a sala e dominou os olhares, a voz contida e o frio na espinha de todos aqueles que a aguardavam, sofregamente, como um banho de luz no meio da maior escuridão.
Felizmente que os dois visitantes decidiram ir-se embora. Quando ficámos sós, entre abraços e sorrisos, saltámos todos num desconcerto. Havia que saborear aquela imensa alegria tão contida. E, excitados, ali ficámos todos, debruçados sobre o rádio, aguardando a hora da 2ª senha.
Sinalizando a continuidade das ações militares do MFA, no programa Limite da Rádio Renascença, ouviu-se a canção Grândola, Vila Morena, de José Afonso, gravada por Manuel Tomás e posta no ar por Leite de Vasconcelos. À meia-noite e vinte, Leite de Vasconcelos lê a primeira quadra da Grândola Vila Morena, marcando a leitura com o som dos passos arrastados que iniciam a canção: «Grândola, vila morena / Terra da fraternidade / O povo é quem mais ordena / Dentro de ti, ó cidade. //»
E o timbre inconfundível e arrebatador de Zeca Afonso espraiou-se naquelas quatro paredes, desarrumando os gestos daqueles que a aguardavam como o signo de todas as liberdades. Já não pudemos ouvir com atenção a leitura de poemas que se seguiu da autoria do jornalista da República Carlos Albino, que era colaborador naquele programa e que, a pedido de Álvaro Guerra e do Comandante Almada Contreiras, havia sido desafiado a enviar mais e prodigiosos sinais.
Naquela altura, era vital avisar outras pessoas significantes do Jornal República. Foi decidido que seríamos eu e o Fernando a fazê-lo. Antes de sair e muito seriamente, o Fernando dirigiu-se ao meu pai e à minha mãe – que já tinham, entretanto, sido informados de tudo o que estava a acontecer – e explicou o que íamos fazer.
«Pai Barata, Mãe Amélia, nós vamos avisar umas pessoas. Se nos acontecer alguma coisa tomem bem conta da nossa filha.»
E aqueles dois avós, antissalazaristas e antifascistas ferrenhos, ali ficaram calma e generosamente aguardando os factos, ao mesmo tampo que uma criança dormia serenamente, no quarto ao lado.
Quais namorados (ah! e tão amantes verdadeiramente!) saímos os dois num carro que não era o nosso, para cumprir um trajeto pré-definido: num prédio nas Amoreiras, avisámos o jornalista Alberto Arons de Carvalho; num outro prédio, na Av. Duque de Ávila, à porta do qual estava estacionado um carro, com dois homens com um ar pidesco, entrámos abraçados num longo beijo, para avisar o Belo Marques, responsável comercial do Jornal República; terminámos a ronda, num andar alto de um prédio na Avenida de Roma, onde morava o jornalista José Jorge Letria.
Destas investidas aventurosas, ficou-me a lembrança de uma noite anormalmente deserta e árida, como se a cidade numa paralisia excruciante estivesse já a pressentir o som áspero e cavernoso da queda do regime.
Quando regressámos a casa, sobraram, em todos nós, as horas sonâmbulas de uma expetativa insana. O telefone de casa já tinha sido cortado. Multiplicando-se em gestos e olhares e tremendamente ansiosos, cada um de nós aguardava, nervosamente, o grande sinal, simultaneamente pacificador e significativo de que o golpe vingava.
E às 04:20 da madrugada do 25 de Abril, fomos tocados pelo alcance de uma voz séria e ritmada, que significava, para todos nós, ou o início de todos os perigos ou o princípio da redenção:
«Aqui Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas.
As Forças Armadas Portuguesas apelam para todos os habitantes da cidade de Lisboa no sentido de recolherem a suas casas, nas quais se devem conservar com a máxima calma. Esperamos sinceramente que a gravidade da hora que vivemos não seja tristemente assinalada por qualquer acidente pessoal para o que apelamos para o bom senso dos comandos das forças militarizadas no sentido de serem evitados quaisquer confrontos com as Forças Armadas. Tal confronto, além de desnecessário, só poderá conduzir a sérios prejuízos individuais que enlutariam e criariam divisões entre os portugueses, o que há que evitar a todo o custo. Não obstante a expressa preocupação de não fazer correr a mínima gota de sangue de qualquer português, apelamos para o espírito cívico e profissional da classe médica, esperando a sua ocorrência aos hospitais, a fim de prestar a sua eventual colaboração que se deseja, sinceramente, desnecessária.»
E assim na madrugada desse dia «inteiro e limpo», tal como o cantou a poeta Sophia, cada um de nós viveu as mais intensas e rútilas memórias da sua geração.
Pouco tempo depois, os jornalistas Álvaro Guerra e José Martins Garcia partiram para o Jornal República cumprindo a sua missão nuclear: dar vida à voz da liberdade. O Fernando Matos Silva e a equipa partiram pelas ruas de Lisboa, captando as imagens grandiosas da expressão generosa de uma aliança entre as armas e o povo. E são muitas dessas imagens que ainda hoje prevalecem para documentar o gesto grandioso de um país que venceu a ditadura, sem lágrimas de sangue. O olhar e a câmara do Fernando Matos Silva – que tinha visto o seu primeiro filme «O Mal-Amado» totalmente proibido pela censura – hão-de ficar indelevelmente livres, testemunhando os atos e as emoções dos militares e do povo.
Eu, perdi-me nas ruas do bairro, batendo às portas dos amigos, a maior parte deles convencidos que era um golpe do Kaúlza de Arriaga. Nem o relato da minha noite os conseguiu convencer totalmente sobre o que estava em andamento!
Teixeira de Pascoais dizia que «a saudade é a velha lembrança gerando um novo desejo». E da saudade que eu tenho desse tempo, só me resta o desejo de que o povo português se mantenha fiel à liberdade que conquistou no 25 de Abril. Nesta terrível liquefação dos valores vinculativos e estruturantes das sociedades democráticas do pós-guerra, aqui e na Europa, regressam os vampiros como se fosse uma festa!
Júlia Matos Silva




enviados por Maria Aragonez
Lisboa


Manifesto "Abril não Desarma" da Associação 25 de Abril
Há 38 anos, os Militares de Abril pegaram em armas para libertar o Povo da ditadura e da opressão e criar condições para a superação da crise que então se vivia.
Fizeram-no na convicta certeza de que assumiam o papel que os Portugueses esperavam de si.
Cumpridos os compromissos assumidos e finda a sua intervenção directa nos assuntos políticos da nação, a esmagadora maioria integrou-se na Associação 25 de Abril, dela fazendo depositária primeira do seu espírito libertador.
Hoje, não abdicando da nossa condição de cidadãos livres, conscientes das obrigações patrióticas que a nossa condição de Militares de Abril nos impõe, sentimos o dever de tomar uma posição cívica e política no quadro da Constituição da República Portuguesa, face à actual crise nacional.
A nossa ética e a moral que muito prezamos, assim no-lo impõem!
Fazemo-lo como cidadãos de corpo inteiro, integrados na associação cívica e cultural que fundámos e que, felizmente, seguiu o seu caminho de integração plena na sociedade portuguesa.
Porque consideramos que:
Portugal não tem sido respeitado entre iguais, na construção institucional comum, a União Europeia.
Portugal é tratado com arrogância por poderes externos, o que os nossos governantes aceitam sem protesto e com a auto-satisfação dos subservientes.
O nosso estatuto real é hoje o de um “protectorado”, com dirigentes sem capacidade autónoma de decisão nos nossos destinos.
O contrato social estabelecido na Constituição da República Portuguesa foi rompido pelo poder. As medidas e sacrifícios impostos aos cidadãos portugueses ultrapassaram os limites do suportável. Condições inaceitáveis de segurança e bem-estar social atingem a dignidade da pessoa humana.
Sem uma justiça capaz, com dirigentes políticos para quem a ética é palavra vã, Portugal é já o país da União Europeia com maiores desigualdades sociais.
O rumo político seguido protege os privilégios, agrava a pobreza e a exclusão social, desvaloriza o trabalho.
Entendemos ser oportuno tomar uma posição clara contra a iniquidade, o medo e o conformismo que se estão a instalar na nossa sociedade e proclamar bem alto, perante os Portugueses, que:
- A linha política seguida pelo actual poder político deixou de reflectir o regime democrático herdeiro do 25 de Abril configurado na Constituição da República Portuguesa;
- O poder político que actualmente governa Portugal, configura um outro ciclo político que está contra o 25 de Abril, os seus ideais e os seus valores;
Em conformidade, a A25A anuncia que:
- Não participará nos actos oficiais nacionais evocativos do 38.º aniversário do 25 de Abril;
- Participará nas Comemorações Populares e outros actos locais de celebração do 25 de Abril;
- Continuará a evocar e a comemorar o 25 de Abril numa perspectiva de festa pela acção libertadora e numa perspectiva de luta pela realização dos seus ideais, tendo em consideração a autonomia de decisão e escolha dos cidadãos, nas suas múltiplas expressões.
Porque continuamos a acreditar na democracia, porque continuamos a considerar que os problemas da democracia se resolvem com mais democracia, esclarecemos que a nossa atitude não visa as Instituições de soberania democráticas, não pretendendo confundi-las com os que são seus titulares e exercem o poder.
Também por isso, a Associação 25 de Abril e, especificamente, os Militares de Abril, proclamam que, hoje como ontem, não pretendem assumir qualquer protagonismo político, que só cabe ao Povo português na sua diversidade e múltiplas formas de expressão.
Nesse mesmo sentido, declaramos ter plena consciência da importância da instituição militar, como recurso derradeiro nas encruzilhadas decisivas da História do nosso Portugal. Por isso, declaramos a nossa confiança em que a mesma saberá manter-se firme, em defesa do seu País e do seu Povo. Por isso, aqui manifestamos também o nosso respeito pela instituição militar e o nosso empenhamento pela sua dignificação e prestígio público da sua missão patriótica.
Neste momento difícil para Portugal, queremos, pois:
1. Reafirmar a nossa convicção quanto à vitória futura, mesmo que sofrida, dos valores de Abril no quadro de uma alternativa política, económica, social e cultural que corresponda aos anseios profundos do Povo português e à consolidação e perenidade da Pátria portuguesa.
2. Apelar ao Povo português e a todas as suas expressões organizadas para que se mobilizem e ajam, em unidade patriótica, para salvar Portugal, a liberdade, a democracia.
Viva Portugal!

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em Abril esperanças mil